domingo, 12 de agosto de 2018


Quando eu era criança, o dia dos pais era um dia de ansiedade e cansaço. A gente gosta de pensar na infância como uma bolha colorida e alegre, mas  eu me lembro bem do meu cansaço infantil. Falo dele e posso senti-lo novamente, bem vívido. Na adolescência, esse dia passou a ser dolorido, de uma dor funda, acompanhada de um sentimento de inadequação. Eu me sentia quebrada, como uma boneca que vem da fábrica com defeito. Achava que tinha  algo de muito errado comigo, a razão de eu ter o pai que eu tinha e a relação que existia entre nós.  E eu fui crescendo, cada vez mais certa de que  o problema era eu, cada vez mais confusa, triste e raivosa. A raiva se instalou em mim de  um modo tal que eu achava que não poderia viver sem ela. Ela ocupou uma parte da minha personalidade, dos meus sonhos, das minhas relações.  Eu me apoiei na mágoa como quem se apóia em muletas. Existia esse cantinho de mim que ninguém conhecia, que eu não dava acesso, o cantinho da mágoa, da raiva, do abandono.



Hoje li muitas pessoas falando sobre seus pais. Alguns diziam das relações felizes com seus genitores, do amor, da confiança, das coisas que aprenderam. Outros falavam de padrastos, tios, avôs. Tudo tão bonitinho de ler. É bom saber que existem pais ótimos, eu conheço pais ótimos, é bom ver as pessoas celebrando seus amores. Mas houve também quem contasse histórias de ausência, de abandono, de palavras difíceis. E ao lê-las me lembrei de algo que meu pai me disse quando eu estava no início  da adolescência: quando você crescer, você vai me entender. Não tenho como saber o que ele quis dizer com essas palavras, mas passei toda uma vida pensando nelas. E quanto mais eu pensava, mais raiva eu sentia porque achava que elas significavam que eu tinha de negar os meus sentimentos e a minha história.

Levou muito tempo, custou muito trabalho emocional e muita paciência, mas eu finalmente entendi.  O cansaço, a ansiedade, a raiva que eu senti  em todos os dias dos pais de que me lembro não são exclusividade minha. A gente vive numa sociedade que permite que os homens vivam suas vidas como bem desejam, que façam escolhas que favoreçam somente a si mesmos, que não dá espaço para que os homens sintam e falem de seus sentimentos, que não exige maturidade e responsabilidade deles.  A gente vive em contextos.  As escolhas que homens adultos fazem não têm a ver com o quanto  seus filhos são bonitos, bons alunos ou legais. Existem homens adultos de todos os tipos. Existem famílias de todos os tipos. Existem relações de todos os tipos. Adultos fazem escolhas, de acordo com suas possibilidades, suas histórias, sua saúde emocional, seu momento de vida. Levei muito tempo pra entender tudo isso.

Hoje eu acordei cansada e ansiosa, mas por motivos bem diferentes. Eu não gosto de estar cansada e ansiosa, mas fico feliz que os motivos não tenham a ver com esse dia. Estou mais em paz com o dia dos pais.  A raiva e a mágoa ainda estão em mim, provavelmente sempre estarão, mas não preciso tanto mais delas, pra me proteger, pra lidar com a dor. 

As escolhas do meu pai não precisam ser a medida do meu valor como pessoa,  a medida do amor que recebo e dou. Existem outros amores, existem outras relações. Existem tantos dias pra celebrar.